sábado, 28 de junho de 2014

PAULO INCENTIVOU A IGNORANCIA?




Uma passagem bíblica empregada como desculpa para o anti-intelectualismo é Colossenses 2.8: “Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas”.
A confusão em torno dessas palavras de Paulo é bem antiga. Tertuliano, um dos pais da igreja do 2º século, ao enfrentar as ameaças do gnosticismo, que tentava combinar elementos do Cristianismo, do Judaísmo e da filosofia grega, teria dito que “é a filosofia que fornece a bagagem intelectual para as heresias”[1]. Ocorre, no entanto, que a crítica de Tertuliano era contra o método dialético de Aristóteles, pelo qual qualquer pessoa poderia justificar quase qualquer conclusão a partir de um argumento coerente, com base em uma premissa maior e uma premissa menor, fossem tais premissas verdadeiras ou não.
Michel Horton explica da seguinte forma:
Tertuliano estava reagindo contra a exploração desse método [dialético] pela seita gnóstica. O mau uso que eles faziam dele [método] fez que o pai da igreja desistisse totalmente de usá-lo na reflexão cristã. Ele apelou para uma passagem que desde então foi muito usada (e talvez abusada) em que Paulo admoesta os crentes colossenses: ‘Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo’ (Cl 2.8; ver também 1Tm 1.4; 2Tn 2.17). Afinal, de contas, trovejou Tertuliano, “o que tem Jerusalém a ver com Atenas, a Igreja com o mundo acadêmico, o cristão com o herege?.
Michel Horton também observa que em sua advertência aos colossenses Paulo não estava argumentando, ao estilo de Tertuliano, que os cristãos devessem considerar toda a sabedoria e filosofia humanas como hostis à fé, pois é preciso lembrar que Paulo foi o homem que defendeu de modo tão eloquente em favor do Cristianismo a partir da filosofia humana em Atos 17. Longe de uma rejeição a todo tipo de filosofia, Paulo estava simplesmente criticando os que misturavam o Cristianismo com a filosofia grega, a qual gerava um misticismo especulativo.
Com efeito, “quando Paulo adverte contra deixar-se levar pela vã filosofia, ele tem em mente um problema específico: essa confusão do cristianismo com a filosofia grega, a última tendo se inserido de modo descuidado sobre a primeira a ponto de as definições de Deus, da criação, da natureza humana, da História e da redenção terem sido totalmente remodelados”. Paulo – prossegue Horton – não estava atacando a filosofia em si, mas o gnosticismo em particular e a dominação da teologia pela sabedoria secular em geral.[2]
A propósito, não faz muito sentido interpretar as palavras do apóstolo Paulo divorciadas de seu exemplo de vida. Paulo foi um erudito. Era brilhante intelectualmente. Possuía um grande apreço pela leitura, estudo e ensino, e usou sua capacidade em prol do Reino de Deus. Estudou aos pés de Gamaliel, um dos mais notáveis pensadores judaicos da época. Ele conhecia a filosofia grega e a literatura gregas (At 17,27, 28; Tt 1.13, 14). Empregou suas habilidades intelectuais para a defesa do evangelho em suas viagens missionárias, mostrando que as profecias do Antigo Testamento haviam se cumprido em Jesus (At 17.1-4). Em Atenas, participou de diálogos culturais, fazendo citações de poetas gregos, antes de conclamar os atenienses ao arrependimento (17.17, 22-31)[3]. Inspirado pelo Espírito Santo, seus escritos foram essenciais para a expansão do Cristianismo e para a formulação de suas bases doutrinárias.
Portanto, alegar que Paulo tenha incentivado a cultura da ignorância é uma tentativa nada inteligente de justificar o injustificável.


[1] HORTON, Michael Scott. O Cristão e a cultura. [tradução Elizabeth Stowell Charles Gomes]. 2.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 49.
[2] HORTON, Michael Scott, p. 59.
[3] NAÑES, Rick. Pentecostal de coração e mente: um chamado ao dom divino do intelecto; tradução Ana Schaeffer. São Paulo, Vida. 2007, p. 48..